A catástrofe yanomami e os militares

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Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Se forem confirmadas as denúncias de que os militares que serviram ao presidente Jair Bolsonaro deixaram de atuar pelo menos em sete oportunidades no combate ao garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami, enfraquecendo ações policiais e contribuindo desse modo para a expansão de atividades criminosas na área, o problema não se resume apenas à degeneração moral e ética dos militares. Mais grave ainda, se esses fatos ocorreram eles mostram o anacronismo da visão de mundo das Forças Armadas, cujos membros há tempos resistem à renovação dos currículos de suas diferentes escolas de formação de oficiais e de Estado Maior. 

Pelas manifestações que alguns de seus membros fizeram nos últimos tempos, as Forças Armadas parecem continuar na metade do século passado. Nesse sentido, basta ver o documento lançado em 2022 pelo Instituto General Villas Bôas, um dos oficiais considerados mais influentes nas três Armas. Intitulado “Projeto de Nação”, o texto traça objetivos, estabelece diretrizes e aponta problemas para os próximos 13 anos. Entre outras teses, afirma que “é visível [no Brasil] a união de esforços entre determinadas entidades nacionais e o movimento globalista, inclusive com o apoio de relevantes atores internacionais, visando a interferir nas decisões de governantes […] e a exercer ingerência em nosso desenvolvimento econômico, usando pautas ambientalistas a reboque de seus interesses. […] O globalismo é um movimento internacionalista cujo objetivo é massificar a humanidade, progressivamente, para dominá-la”.

São afirmações que agridem a realidade. Elas simplesmente deixam de lado que vivemos hoje um período histórico de avanço da inteligência artificial, o que aumentará ainda mais a interconexão do mundo contemporâneo e a formulação de políticas ambientais globais. 

No que se refere à região amazônica, o texto propõe 1) a “remoção da legislação indígena e ambiental” nas áreas atrativas do agronegócio e da mineração”; 2) a adoção de “incentivos governamentais para a indústria 4.0 e o agronegócio”; 3) limitar ao “máximo” as “tentativas de influência político-partidária nas decisões a serem tomadas, quando elas estiverem calçadas em interesse grupais e individuais, com prejuízo de interesses da coletividade regional e nacional”. Também aponta “ingerência internacional na região, com a participação de atores estatais e não estatais, inclusive de organismos internacionais, e de segmentos internos com forte poder midiático e político”. E conclui que “falta consenso sobre os modelos de desenvolvimento das diferentes amazônias de nossa Amazonia” e “sobre as reais consequências climáticas da ocupação e exploração da Amazônia”. 

Primário e por vezes patético, o documento revela um enorme desconhecimento das transformações ocorridas no âmbito do Estado, do direito, da economia e da política entre o final do século 20 e o começo do século 21, dando novo significado às ideias de fronteira e território. Em um mundo cada vez mais interconectado, a noção de que o Estado nacional é o titular do monopólio da produção das normas jurídicas foi posta em xeque. A integração dos mercados financeiros foi muito além dos convênios, tratados e convenções firmados com base na autoridade soberana dos Estados. Da multiplicidade de decretos, leis e normas constitucionais em cada país caminhou-se para uma diferenciação de ordenamentos jurídicos definidos não mais em termos nacionais e territoriais, mas em termos funcionais e setoriais. 

Com a perda da centralidade do direito nos Estados-nação, o monismo jurídico e a ideia de soberania cederam lugar para o pluralismo jurídico e soberanias compartilhadas. À medida que o processo de desnacionalização da produção do direito se acentuou, parte da titularidade legislativa dos Estados foi sendo deslocada para instâncias não legislativas e organismos internacionais, supranacionais e multilaterais.

Ao mesmo tempo em que a ordem jurídica dos Estados escoou para a área de influência dessas entidades, a formação de blocos comerciais também deflagrou uma onda de direitos regionais. Dessa integração global dos mercados emergiu uma ordem jurídica multicêntrica, baseada numa intrincada combinatória de normatividades locais, nacionais, regionais, internacionais e globais. Esse modelo de direito se destaca pela multiplicidade de redes contratuais e de marcos normativos transterritoriais. Concebidos para balizar operações globalizadas e novas formas de governança, essas redes contratuais e esses marcos normativos deflagraram um processo de desterritorialização dos regimes legais, o surgimento de normas cosmopolitas, o advento de zonas multinacionais de soberania e a criação das chamadas leis globais sem Estado. 

A ordem jurídica do século 21 consiste assim numa normatividade de múltiplos níveis, onde convivem regras de validez local, nacional, regional, internacional ou mesmo global. A expansão desse novo modelo de direito, ao contrário do que ocorre no processo legislativo dos Estados nacionais, tende a ser pouco controlada pelos sistemas políticos tradicionais. À medida que a interconectividade mundial se acelerou, foram surgindo novos circuitos de poder ao mesmo tempo em que as cadeias globais de valor se consolidaram, desenvolvendo estruturas jurídicas próprias, com um grau de formalização menor do que o do modelo de direito do século 20 e com regras mais flexíveis. Esse é um modelo que opera por meio de conceitos normativos influenciados não só por noções técnico-jurídicas, mas, também, por noções econômicas e conceitos sociológicos.

Com isso, o Estado nacional vai deixando, na prática, de ser um locus de coordenação entre um território, uma comunidade, uma administração e uma legitimidade. Sua existência não está ameaçada. O que muda são suas funções e seus papéis. Esse Estado já não é mais o titular exclusivo do monopólio da produção do direito positivo em seu território. A globalização dos mercados os submeteu cada vez mais a lógicas e diretrizes vindas de fora, seja de organismos internacionais, supranacionais multilaterais, seja de fontes materiais e não estatais como fontes privadas (envolvendo procedimentos regulatórios desenvolvidos por entidades empresariais) e fontes técnicas (baseadas na expertise científica). Assim, direito positivo deixa de ser um modelo normativo verticalizado sob controle do Estado e assume a forma de uma concepção mais heterárquica, flexível e negociada de ordem jurídica. 

 Essas mudanças, que parecem ser desconhecidas pelos autores do documento ”Projeto de Nação”, implicam problemas políticos. No limite, a normatividade decorrente dessas mudanças não é apenas plural. É, também, uma normatividade de múltiplos níveis, dos quais alguns são produzidos sem o respeito ao processo legislativo e a alguns princípios clássicos da institucionalidade democrática, como transparência, previsibilidade e uniformidade na aplicação das leis.

Uma das características dessa malha de normatividades é o fato de que elas são sobrepostas e não têm maior coerência entre si, combinando regras de validez local com regras cuja validez pode ser translocal, regional, internacional e supranacional. Outra característica desse sistema jurídico de múltiplos níveis e com diferentes escalas está no fato de que ele tende a não ser mais controlado pelo sistema político, em razão do crescente número de órgãos mundiais cuja criação não decorreu de tratados ou convenções firmados entre países, como o World Telecommunication Policy Forum e a International Telecommunication Union. 

Pelo que têm dito e falado nos quatro ou cinco últimos anos, os militares brasileiros — que entre a proclamação da República até a década de 1950 se julgavam “moderadores” ou “árbitros”, e que nos tempos da ditadura tentaram assumir o papel de “policy maker” – parecem ter perdido o bonde da história, como pode ser visto em sua atuação nas questões amazônica e ambiental. Atrelados a um nacionalismo míope, não sabem sequer identificar os problemas socioeconômicos e político-institucionais de um mundo interconectado que deveriam estar discutindo. 

Se tivessem sido eficientes na modernização de seus centros de formação e de seus currículos, alguns militares certamente não estariam hoje sendo acusados de terem deixado de ajudar, em pelo menos sete oportunidades, no combate ao garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomani. Nem, muito menos, estariam sendo objeto de uma investigação determinada pelo Supremo Tribunal Federal para apurar se houve crimes de genocídio e crimes ambientais com devastador impacto na vida, na saúde e na segurança da população yanomami.

Queira-se ou não, essa é a leitura que se faz desse cenário trágico. Mesmo que os militares envolvidos e seus respectivos comandos à época ofereçam explicações e refutem essas acusações, a imagem dos militares acabou sendo atingida. Pior: esperando que eu esteja enganado, se iniciativas como o lançamento do equivocado e patético documento do Instituto General Villas Bôas, em 2022, refletirem o pensamento de todo o estamento militar, o estrago em sua reputação será ainda maior.

Fonte: JOTA Info
https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-catastrofe-yanomami-e-os-militares-08022023

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