Corte IDH: Proteção penal da honra de funcionários públicos é incompatível com convenção

Corte Interamericana de Direitos Humanos / Crédito: Divulgação Corte IDH

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) considerou, em sentença no caso Baraona Bray x Chile, publicada na última terça-feira (28/2), que o uso da via penal para proteger a honra de funcionários públicos não é compatível com a Convenção Americana e viola o direito fundamental à liberdade de expressão.

Trata-se de um novo parâmetro da Corte, que ressaltou que o precedente não se aplica à responsabilização por crimes que envolvam a imputação falsa de delito, em razão do maior potencial lesivo.

No caso concreto, o tribunal considerou o Chile internacionalmente responsável pelas violações dos direitos à liberdade de pensamento e expressão, ao princípio da legalidade e proteção, em detrimento do advogado e ambientalista Carlos Baraona Bray.

Entenda o caso

O defensor ambiental foi condenado criminalmente por injúria em um processo movido pelo senador chileno Sergio Páez em 2004, depois de conceder entrevistas nas quais citou que o parlamentar, à época do Partido Democrata Cristão (PDC), tinha conhecimento de um esquema de corte e comércio ilegal de alerce, uma árvore milenar protegida como patrimônio pelas leis chilenas.

Processado pelo senador, Baraona foi condenado a 300 dias de prisão e pagamento de multa equivalente a U$S 500 mil. O advogado disse que em nenhum momento acusou o senador de corrupção, mas que apenas afirmou que ele estava ajudando pessoas sem saber que eram criminosos.

Para a Corte, a sanção penal em casos de crimes contra a honra de agentes públicos tem efeito amedrontador para toda a população, o que enfraquece e empobrece o debate público e debilita o controle social. Isso porque agentes públicos estão, em geral, expostos a maior escrutínio e à crítica pública.

“O aspecto coletivo da liberdade de expressão, como pilar fundamental da sociedade e como direito processual para o exercício da participação pública, permite que, por esse meio as pessoas exerçam o controle democrático dos esforços do Estado para poder investigar e apreciar o cumprimento de funções públicas. Nesse sentido, permite que as pessoas façam parte do processo de tomada de decisão e que suas opiniões sejam ouvidas. Assim, o controle democrático da sociedade, por meio da opinião pública, fomenta a transparência das atividades do Estado e promove a responsabilização dos servidores em relação à sua gestão pública. Por esta razão, os Estados devem abster-se de realizar condutas que afetem os direitos humanos, como submeter pessoas a processos penais sem garantias do devido processo, ou praticar atos diretos ou indiretos que constituam restrições indevidas à liberdade de expressão”, pontuou a Corte.

Medida alternativa

Os juízes ressaltam que a restrição ao uso da proteção penal para reprimir discursos não significa que a honra dos agentes públicos não possa ser protegida, mas sim que essa proteção deve se dar preferencialmente por outras vias menos restritivas à liberdade de expressão, como a reparação civil e o direito de resposta.

Na decisão, o tribunal também reforça proteção especial a defensores do meio ambiente. “A Corte considera que o respeito e a garantia dos direitos dos defensores dos direitos humanos em matéria ambiental, além de ser um compromisso adquirido pelos Estados Partes da Convenção Americana, na medida em que são pessoas sob sua jurisdição, é de especial importância porque realizar um trabalho ‘fundamental para o fortalecimento da democracia e do Estado de Direito’”.

Em razão da condenação, os juízes ordenaram que o Chile adote medidas legislativas para ajustar a tipificação do crime de injúria, no sentido de analisar sua supressão do código penal e de estabelecer meios alternativas ao processo penal para a proteção da honra de funcionários públicos.

Os juízes Rodrigo Mudrovitsch, Ricardo Pérez Manrique (presidente, Uruguai) e Eduardo Ferrer MacGregor (México) apresentaram voto concorrente conjunto, no qual destacam avanços produzidos pela sentença em relação à jurisprudência da Corte IDH sobre liberdade de expressão. Para eles, o presente caso “eleva os padrões da Corte IDH a um novo nível, refletido no reconhecimento de que a proteção criminal da honra de funcionários públicos contra ofensas e a imputação de fatos ofensivos não têm apoio na convenção”.

Adriano Teixeira, advogado e professor de Direito Penal da FGV-SP, elogia a decisão da Corte, que, segundo ele, segue uma tendência mundial de proteção da liberdade de expressão.

“O que achei interessante da sentença é que, principalmente no voto concorrente dos juízes Mudrovitsch, Manrique e MacGregor, a mensagem é que não se deve desproteger a honra dos funcionários públicos, mas que a forma de se proteger não é o Direito Penal. Vejo uma observância do princípio da ultima ratio do Direito Penal. Ou seja, se há outros meios idôneos de proteger a honra, como a via cível, isso deve ser privilegiado em detrimento da solução penal como fazem algumas tradições jurídicas”, diz o professor.

Teixeira evidencia que a sentença descriminaliza apenas casos em que há interesse público e que não envolvem violência ou ameaça, por exemplo. “A Corte não propôs uma descriminalização total da imputação falsa de crimes contra funcionários públicos. Ela trata de casos de ofensas em assuntos de interesse público. Esse limite traçado pela Corte faz sentido porque a imputação de um crime é algo que tem maior gravidade do que simplesmente uma ofensa. Quando estão envolvidas violência direta ou ameaça, por exemplo, a situação é muito diferente e deve ser observada com mais cautela”.

‘Criticar não é liberdade para atacar’

Alaor Leite, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, também salienta que a decisão da Corte não é uma carta branca para qualquer tipo de ataque a figuras públicas.

“A proteção de liberdade de expressão é uma proteção contra juízos valorativos, mas não abriga a imputação de fatos falsos. Vai bem a Corte nesse sentido. Não se trata de uma ampla descriminalização ou desproteção, mas sim de uma sinalização de que as pessoas públicas estão sujeitas ao escrutínio da opinião pública, elas têm uma maior casca por estarem protegidas também pelas instituições e pelas funções que exercem. A mensagem, no fim, é que é preciso estabelecer um padrão mínimo e um estimulo à circulação franca de ideias. É uma proteção do Estado de Direito frente às autoridades individualmente consideradas”, pontua Leite.

Segundo Leite, a liberdade para criticar não é liberdade para atacar. “Quando o sujeito está em um restaurante, jantando, ele não é ministro ou parlamentar. Ali não é lugar para troca de ideias públicas. O objeto do debate não pode ser oportunidade para ofender a pessoa do agente público, desgarrado do tema. O limite, então, é o limite das funções. O debate público ganha com divergência, mas o tema não pode ser simplesmente o ensejo para destruir a pessoa do ocupante de cargo público”

A advogada Tais Gasparian defende uma reforma no Código Penal brasileiro para que o crime de injúria seja extinto. Ela é fundadora do Instituto Tornavoz, que se propõe a defender juridicamente pessoas que sofrem processos em razão do exercício da manifestação do pensamento e da expressão.

“O que acontece no Brasil é que os delitos contra a honra não são apenas tipificados no Código Penal, mas também são apenados com prisão. Temos, aqui no Brasil, diversos dispositivos legais que protegem os funcionários públicos, distinguindo-os dos cidadãos comuns. Quando as críticas são dirigidas a agentes públicos, atribui-se uma sanção maior ao ofensor, como se a reputação dos funcionários públicos fosse um direito natural, como se a reputação fosse um ‘direito natural’, como se eles fossem intocáveis. Por essa razão, a decisão da Corte é extremamente relevante. É uma sinalização de que os países que se pretendem democráticos não podem criminalizar ofensas, comentários que sejam feitos contra funcionários públicos. Neste sentido, é importantíssimo que se crie no Brasil um movimento de descriminalização dos delitos contra a honra”, diz.

Na mesma linha da decisão da Corte, ela propõe o uso da esfera cível para casos em que funcionários públicos se sintam atacados. “Não cabe ao Estado iniciar o processo em crimes contra a honra. Cabe ao particular, porque não se tem objeto de tutela do Estado, como em casos de roubo, corrupção, lesão corporal, alguns crimes de colarinho branco, por exemplo. Os crimes contra a honra são crimes de iniciativa privada, relativos a dois particulares, e, portanto, devem ser tratados no âmbito cível”.

Fonte: JOTA Info
https://www.jota.info/justica/corte-idh-protecao-penal-da-honra-de-funcionarios-publicos-e-incompativel-com-convencao-07032023

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