Laqueadura cresce no Brasil em meio a obstáculos de acesso a contraceptivos

laqueadura
Crédito: Unsplash

A partir de março, passam a valer as mudanças na lei do planejamento reprodutivo que reduziram para 21 anos a idade mínima para que mulheres se submetam à laqueadura tubária e derrubaram a exigência de autorização do parceiro. Antes mesmo da medida, o método contraceptivo já crescia no SUS – à frente de alternativas reversíveis e menos invasivas.

No ano passado, foram feitos 90,2 mil procedimentos desse tipo, de acordo com o DataSUS. Mesmo ainda sem os dados de dezembro, esse é o maior número da série, que começou em 2008. O patamar era de cerca de 65 mil laqueaduras anuais até 2017, mas o ritmo cresceu. Desde então, enquanto a população feminina na média de idade fértil variou 1,5%, esses procedimentos aumentaram 40% no país.

A mudança na idade e a autonomia para a mulher decidir sem a obrigatória participação do cônjuge não explicam sozinhas o crescimento no número de laqueaduras. O aumento da busca pelo método irreversível é visto como um sintoma da situação das fragilidade das políticas públicas atuais de atenção à saúde reprodutiva feminina.

Hoje, uma em cada cinco mulheres em idade reprodutiva e com vida sexual ativa têm a esterilização como método contraceptivo. “O nível alto de laqueadura geralmente representa um fracasso das políticas públicas em oferecer um amplo leque de métodos às mulheres, principalmente de longa duração”, afirma a ginecologista Ilza Maria Monteiro, vice-presidente da Comissão Nacional Especializada em Anticoncepção da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).

Na estratégia de aconselhamento, o método é mais recomendável quando outras alternativas não satisfizeram as usuárias – por não terem evitado gestações indesejadas ou pelos efeitos adversos, por exemplo. “A maior liberdade para as mulheres decidirem, com a ampliação da idade, é positiva, mas também é necessário que elas tenham acesso a todos os métodos”, afirma.

O crescimento do número de laqueaduras foi maior na região Norte, onde os procedimentos mais que dobraram entre 2016 e 2022. Eles passaram de 4,3 mil para 8,9 mil no período. Em seguida, o Nordeste apresentou aumento de 66%, saltando de 15,8 mil para 26,5 mil. Nos estados do Centro-Oeste, a variação foi de 56%; no Sudeste, de 25%; e no Sul, de 11%.

Nos últimos anos, a política de regulação de fecundidade que recebeu mais destaque foi a campanha “Tudo tem seu tempo”, promovida pelos então ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta e da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves. A ideia era promover a abstinência sexual a jovens, sem abordar métodos modernos de contracepção.

A relação do Brasil com a laqueadura

O aumento no número de procedimentos ressoa uma situação enfrentada pelo Brasil em décadas passadas. O país conviveu com a elevada participação da laqueadura entre os métodos usados pelas mulheres, inclusive sob a apreensão de esterilizações sem consentimento e voltados à populações mais vulneráveis, como pobres, negras e indígenas.

Por isso, desde 1996, quando foi criada a legislação de planejamento familiar, que assegurou o direito à contracepção e o acesso igualitário a informações sobre fecundidade – para mulheres e homens –, a esterilização voluntária exigia que se tivesse ao menos 25 anos ou dois filhos vivos. Ela também dependia do consentimento de ambos os cônjuges.

O novo texto, aprovado pelo Congresso em setembro, diminuiu a exigência para 21 anos, mas manteve o número de dois filhos para idades abaixo disso. O procedimento também pode ser feito quando uma gestação representa risco à vida ou à saúde da paciente, o que já era permitido.

Outra mudança é que a única exigência para a realização do procedimento após o parto ou aborto é que o pedido tem de ser feito com 60 dias de antecedência – fora desse prazo, o médico comete crime se fizer a cirurgia. Antes, a laqueadura só poderia ocorrer “nos casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores”; em 2022, cerca de metade das laqueaduras foram feitas após uma cesárea.

A lei do planejamento familiar fala explicitamente que, ao colocar limitações no perfil, ela visa desencorajar a esterilização precoce. Também proíbe a utilização das ações de regulação da fecundidade para qualquer tipo de controle demográfico.

“Durante a discussão sobre regulamentar o planejamento familiar, as mulheres do movimento negro bateram o pé para que a idade mínima não fosse tão baixa justamente para evitar esterilizações precoces, como acontecia”, contextualiza a historiadora Sabrina Silva, que atua na clínica jurídica de direitos sexuais e reprodutivos Cravinas, formada por pesquisadoras da Universidade de Brasília (UnB).

Em 1996, a laqueadura tubária era, de longe, o método contraceptivo mais usado pelas mulheres: 40% das sexualmente ativas e que menstruavam, com maior prevalência em áreas onde as mulheres tinham menor escolaridade e viviam em condições socioeconômicas mais precárias. Em seguida, aparecia a pílula anticoncepcional, usada por outras 21%.

A esterilização masculina era apontada por apenas 2,6% delas; 4,4% usavam camisinha como principal método; e o DIU era a escolha de apenas 1,1%, segundo a Pesquisa Nacional sobre Demografia e Saúde, realizada em 1996.

“Precisamos ter certeza de que não estamos em um cenário parecido com o dos anos 1990, quando as mulheres não tinham acesso completo à contracepção”, adiciona Silva.

O baixo uso de outros métodos, inclusive com ausência de menção ao diafragma, é sinal do limitado acesso das mulheres às opções para regular a própria fecundidade, salienta a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, de 2004, que não recebeu atualizações com dados mais recentes nem com novas orientações desde então.

Segundo o documento, um dos reflexos dessa fragilidade é que metade dos nascimentos naquela época não eram planejados e uma em cada dez mulheres de áreas rurais não tinham suas necessidades de anticoncepção satisfeitas. Além disso, aponta que situações como essas contribuem para a ocorrência de abortos inseguros e aumento de mortes por essa causa.

Desde então, outras alternativas de contracepção ganharam espaço, mas a esterilização ainda se mantém entre os métodos mais usados. Ele é o único estabelecido como permanente e irreversível – hoje, é possível retroceder os efeitos, mas não há garantia sobre a viabilidade, ou fazer tratamentos de fertilização in vitro se deseja engravidar após.

A laqueadura é o principal método para 17,3% da população feminina entre 15 e 49 anos sexualmente ativa, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde de 2019 – o levantamento também mostra que, tanto nas áreas urbanas quanto rurais, a proporção de mulheres que tomam alguma medida de anticoncepção gira em torno de 80%.

A liderança passou a ser da pílula anticoncepcional, que abrange 40,6% delas, seguida pela camisinha masculina, usada por parceiros de 20,4% das mulheres pesquisadas. Outras alternativas tiveram variações menores: o DIU foi eleito por 4,4% e outros métodos modernos (como camisinha feminina e adesivo hormonal) somaram 0,6%.

A esterilização (que inclui também se parceiros têm vasectomia) é mais comum entre mulheres de 35 e 49 anos: esse é o método usado por quatro em cada dez delas. Já no grupo de 25 a 34 anos, 15,2% das mulheres ou dos parceiros se submeteram a uma esterilização.

Hoje, a laqueadura tem taxa de eficácia em evitar uma gravidez acima de 99%. Os métodos mais usados, a pílula e a camisinha, somam 91% e 82%, respectivamente, conforme estudo conduzido nos Estados Unidos em mulheres, publicado em 2011. O DIU de levonorgestrel (espécie de hormônio sintético que simula progesterona) tem eficácia de 99,8% e o de cobre tem 99,2%.

Esses dois últimos podem permanecer por cerca de uma década antes de serem trocados e não dependem de procedimentos cirúrgicos – o SUS indica a inserção por médicos, mas ela pode ser feita em unidades básicas de saúde, e não apenas em hospitais.

Anualmente, o SUS tem inserido menos DIUs do que feito laqueaduras, mantendo o histórico anterior à lei do planejamento reprodutivo. Em 2022, foram 70 mil, número que tem crescido nos últimos anos também. Contudo, diferentemente da esterilização feminina, que está em seu maior patamar, o dispositivo tem mais altos e baixos: em 2020, primeiro ano da pandemia, foram 29 mil inserções, por exemplo.

“O cenário sempre foi esse. Há, inclusive, a percepção de que os médicos que atuam no SUS não gostam de recomendar ou não sabem inserir o DIU”, afirma a médica sanitarista Elizabeth Meloni Vieira, professora aposentada da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP).

Todas as alternativas devem estar à disposição. “É preciso lembrar que a laqueadura lida apenas com a contracepção, sendo que há mulheres acometidas por outras questões, como sangramento excessivo que afeta duas em cada três brasileiras e leva a problemas uterinos”, aponta Monteiro, da Febrasgo.

O dispositivo, a depender do modelo, pode tanto aumentar quanto reduzir o fluxo menstrual, por exemplo, por isso todos os métodos dependem de uma avaliação personalizada que vai além da probabilidade de falha.

Outra preocupação é garantir que as mulheres não se afastem da atenção em saúde reprodutiva ou deixem de fazer outros tratamentos, não relacionados com a a fecundidade, após o procedimento da laqueadura.

O direito à regulação da fecundidade na Justiça

Apesar do aumento nos procedimentos realizados, o acesso à esterilização também encontra barreiras. A irreversibilidade e outros questionamentos que cercam o método – como a possibilidade de arrependimento futuro – são justificativas frequentes para cercear a escolha.

Entretanto, há uma busca de mulheres ao Judiciário para que redes municipais de saúde e convênios médicos autorizem a realização do procedimento. Em muitos casos, elas cumprem os requisitos da legislação, mas reclamam de negativas. Nos processos, são comuns os relatos de exigências como cesáreas anteriores.

Em São Paulo, uma mulher com três filhos, que já havia dado à luz via cesarianas, pedia para fazer uma esterilização, já que teria tido também depressão pós-parto. A data provável do nascimento também ocorreria em mais de 60 dias. O sistema de saúde negou a realização do procedimento, mas, em decisão de janeiro, o juiz Marcio Ferraz Nunes, da 16ª Vara da Fazenda Pública do Foro Central, ordenou que a laqueadura fosse realizada.

Quando se trata de mulheres jovens e com poucos filhos, a restrição frequentemente é feita pelos médicos. Em consulta com profissional do Convênio São Francisco de Saúde, uma mulher casada, de 25 anos e dois filhos, teria tido o pedido de laqueadura negado por ele, que demandou uma autorização judicial – segundo a provedora, seria para ampará-lo no caso de arrependimento no futuro.

O juiz observou que o médico buscou se esquivar do exercício de sua profissão e responsabilidades. “Não havendo negativa contratual ou legal, não cabe ao médico ‘empurrar’ sua paciente ao Poder Judiciário, como forma de buscar se eximir de futura responsabilidade por ato que é inerente à atividade médica”, disse Thiago Zampieri da Costa, do Juizado Especial Cível e Criminal de Santa Rita do Passa Quatro (SP).

Em Patrocínio Paulista (SP), uma mulher grávida de 37 semanas e já mãe de outros cinco filhos pedia para ser submetida à laqueadura. Porém, ao procurar a Santa Casa do município e a Secretaria municipal de Saúde recebeu a informação que não poderia fazê-la pois havia feito apenas um parto de cesárea – ela precisaria ter pelo menos três.

Nesse caso, o juiz Daniel Diego Carrijo, do Juizado Especial Cível de Patrocínio Paulista, condenou o município a custear a cirurgia. Além dos requisitos legais, ele justificou a decisão diante da carência econômica da mulher e disse que ela “comprovou suficientemente a situação de vulnerabilidade social vivenciada por seu núcleo familiar”, já que não tem auxílio de sua família e é mãe solo.

“A laqueadura se tornou muito popular pelo entendimento que se criou de que a esterilização seria a melhor solução para a vida de uma mulher pobre, em uma lógica de controle da explosão demográfica. Muitas lideranças médicas foram treinadas sob essa lógica”, diz Silva, da Cravinas, da UnB. “Se a preocupação é o combate à pobreza, por que parar na laqueadura?”.

Autonomia para decidir

Há dois principais perfis de mulheres esterilizadas no Brasil, considerando dados da década passada: aquelas que ultrapassaram o número desejado de filhos, são negras ou indígenas, residem no Norte e Nordeste do país, têm níveis de educação mais baixo e tiveram diferentes uniões estáveis; de outro lado, estão as que tiveram menos filhos do que estariam dispostas, passaram por cesáreas e utilizam plano de saúde.

Nessa linha, as mulheres com alto nível de escolaridade são esterilizadas após atingirem o número ideal de filhos, como resultado do planejamento familiar por meio do uso de contraceptivos temporários.

Já aquelas com baixa escolaridade são esterilizadas sem ter usado outro método contraceptivo, depois de atingirem mais filhos do que gostariam e experimentarem intervalos de parto mais curtos, além de demonstrar uma maior incidência de arrependimento pelo número total de filhos já nascidos. Assim, a opção pela esterilização parece ser resultado de maior fertilidade entre as mulheres que começaram a ter filhos cedo na vida.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) alerta que, embora a esterilização seja um método importante, devendo ser promovido apenas com o completo esclarecimento da mulher, é frequente que certos grupos populacionais sejam pressionados ou coagidos a isso. Esse seria o caso de pessoas com deficiência, dependentes químicos, soropositivos e outros vulneráveis.

Por isso, novamente, seria preciso reforçar o consentimento esclarecido e as informações sobre o método. A lei brasileira proíbe a induzir ou instigar individualmente ou coletivamente a esterilização cirúrgica. Além disso, prevê que pessoas absolutamente incapazes somente podem se submeter à cirurgia mediante autorização judicial.

Uma violação às garantias de consentimento e autonomia se tornou conhecida com o caso de Janaina Aparecida Quirino. Em 2017, a pedido do Ministério Público de São Paulo, ela foi esterilizada involuntariamente após o parto. Os argumentos eram que ela, por ser dependente química, estava exposta a aumentar a sua prole de forma irresponsável e não planejada.

Mais tarde, a 8ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) reformou a decisão, porém ela já havia sido submetida à cirurgia. Os desembargadores afirmaram que não se tratava de proteção à saúde dela, mas controle demográfico.

Impactos no sistema de saúde

A laqueadura não pode ser vista como saída para a regulação de fertilidade também diante das limitações do sistema de saúde – o que pode tornar o método caro e inacessível para muitas.

Hoje, conforme a tabela SUS, que indica o valor repassado para instituições conveniadas por serviços prestados, se paga R$ 199 pelo procedimento ao profissional médico desde 2022; há dez anos, eram R$ 139. Já a cesárea seguida da esterilização se manteve a R$ 150 nos dois momentos.

De acordo com o Conselho Federal de Medicina (CFM), os valores têm uma defasagem de mais de 1.000% em relação aos preços de referência de serviços médicos. A laqueadura custaria R$ 2,7 mil se fosse seguida a métrica usada em serviços particulares. Já se apenas houvesse ajuste pela inflação, o valor seria de R$ 256.

Diante do cenário, mulheres questionam que hospitais se negam a realizar a laqueadura – a menos que o procedimento seja pago de forma particular. Esse foi o caso de uma gestante de Adamantina (SP) que aguardava o terceiro filho e pediu que o município custeasse a cirurgia, já que a Santa Casa do município cobra cerca de R$ 4 mil pelo procedimento.

“Sabemos que as cirurgias eletivas estão com filas no SUS, que está deficitário, o que impacta quem espera pela laqueadura”, diz Meloni Vieira, da USP. Inclusive, uma das razões para o aumento dos procedimentos em 2022 poderia ser devido ao represamento de cirurgias eletivas durante a pandemia de Covid-19 – o que não explicaria o crescimento em anos anteriores, porém.

A laqueadura demanda mais recursos por pessoa atendida do que outros métodos de longa duração. Enquanto apenas um médico é capaz de inserir o DIU ou aplicar um adesivo no ambulatório, uma equipe cirúrgica é composta de pelo menos três profissionais, além da necessidade de instalação hospitalar, sedação e leitos de internação.

“A possibilidade de aumento da demanda entre mulheres mais jovens deve ser marginal, desde que a orientação de planejamento familiar seja adequada. É um desafio para o sistema de saúde como um todo”, afirma Cassio Ide Alves, da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge).

“As cirurgias de reversão atualmente não estão no rol da ANS [que indica o que será coberto pelos planos de saúde], então se a demanda por elas aumentar e elas passarem a ser cobertas, os reflexos financeiros podem aumentar muito”, completa. Ele destaca que o direito de escolha deve ser observado, mas igualmente o acesso à informação esclarecida.

Processos citados na matéria: 1002424-14.2022.8.26.0103, 1001325-35.2022.8.26.0547 e 0000617-74.2022.8.26.0426.

Fonte: JOTA Info
https://www.jota.info/tributos-e-empresas/saude/laqueadura-cresce-no-brasil-em-meio-a-obstaculos-de-acesso-a-contraceptivos-19022023

Deixe uma resposta