Pacientes com síndrome rara aguardam regulamentação de novo medicamento pela Anvisa

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A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera como doenças raras aquelas que atingem até 65 indivíduos a cada 100 mil. Dentre elas estão as mucopolissacaridoses (MPS), um grupo de condições genéticas que têm em comum a produção insuficiente de uma enzima. Essa deficiência enzimática ocasiona uma série de alterações metabólicas no organismo, as quais impactam diretamente a sobrevida e a qualidade de vida dos pacientes.

Um novo e promissor medicamento atravessa a barreira hematoencefálica e atua sobre os efeitos neurológicos da mucopolissacaridose tipo II, o que pode mudar o prognóstico dessas pessoas. Pacientes e familiares brasileiros aguardam a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) regulamentar a medicação, registrada e comercializada desde 2021 no Japão, mas ainda sem previsão de chegar no Brasil.

Conhecida também como síndrome de Hunter, a MPS II ocorre por um erro inato que impede a produção de uma enzima envolvida na degradação de glicosaminoglicanos (antigamente chamados de mucopolissacarídeos – de onde vem o nome mucopolissacaridose), substâncias produzidas pelo organismo. Dessa forma, esses compostos se acumulam no corpo e geram consequências sistêmicas (motoras e sensoriais) e também neurológicas. As manifestações clínicas se iniciam ainda nos primeiros meses da infância.

A MPS tipo II se apresenta sob duas formas: a atenuada, que atinge 30% dos pacientes, e a severa, mais prevalente e com maior impacto no desenvolvimento neurocognitivo, podendo levar o paciente a óbito por volta dos 15 anos de idade.

“A doença tem caráter genético progressivo. A criança nasce sem alterações e, ao longo do tempo, aparecem manifestações que afetam órgãos como o fígado, articulações, audição, além de alterações na face, com lábios mais espessos e nariz proeminente. As consequências neurológicas aparecem mais tarde, com a perda da fala e de outras atividades cognitivas”, explica o médico Roberto Giugliani, geneticista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e professor titular do Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.  

Desafios do diagnóstico da MPS II

Como os primeiros sintomas são em geral inespecíficos, o diagnóstico pode demorar anos, como foi o caso de Anthony. “Percebemos alguns atrasos no desenvolvimento, mas os médicos que o acompanhavam diziam que era falta de estímulo. Somente aos três anos, depois de ser encaminhado para um neuropediatra e ter realizado uma série de exames, inclusive genéticos, é que descobrimos a doença”, conta o empresário Antoine Daher, pai de Anthony. 

Em 2013, um ano após o diagnóstico do filho, Daher fundou a Casa Hunter. A instituição é voltada a reunir familiares de pacientes que têm a síndrome, mas também tem o intuito de garantir soluções públicas e sensibilizar o setor privado e a sociedade em geral para os portadores de doenças raras. Tem como missão acolher portadores de doenças raras e seus familiares. E também promover ações com objetivo de diagnosticar, prevenir e tratar doenças raras e afins; além de mobilizar a sociedade civil, influenciar políticas públicas e conjugar esforços para atender as demandas dos pacientes em toda sua amplitude, incluindo projetos de políticas públicas para indivíduos com doenças raras. 

“Eu não queria aceitar que meu filho iria morrer em poucos anos. Praticamente larguei meu trabalho e comecei a estudar genética até 3h da manhã, todos os dias. Lia teses de mestrado e doutorado, pesquisei os melhores médicos no Brasil e no mundo para entender mais sobre a MPS II”, afirma o empresário. A Casa Hunter estima que existam cerca de 200 pessoas portadoras da síndrome no Brasil. 

A partir dessa busca, Daher conheceu o geneticista Roberto Giugliani, um dos pesquisadores responsáveis pelo desenvolvimento da diretriz brasileira de tratamento da mucopolissacaridose tipo II, publicada em artigo em 2010. Atualmente, o único tratamento disponível fora do Japão é a reposição semanal da enzima por meio de infusões intravenosas. “Há uma melhora de vários aspectos físicos da doença, mas como a enzima não ultrapassa a barreira hematoencefálica, a parte neurológica não é tratada”, aponta Giugliani.

Tecnologia inovadora para sintomas neurológicos

O pai de Anthony entrou em contato com o geneticista, com o objetivo de compreender os possíveis avanços científicos no tratamento da MPS II. A busca os levou à JCR, uma empresa farmacêutica japonesa que havia desenvolvido um medicamento inovador – chamado pabinafuspe alfa –, capaz de atravessar a barreira hematoencefálica. Essa barreira funciona como um filtro e dificulta a passagem de uma série de substâncias e microrganismos ao cérebro, como forma de proteção. De maneira inédita, o remédio consegue atravessar a barreira e atua no sistema nervoso central, o que ocasiona benefícios não só para os sintomas sistêmicos, mas principalmente para os neurocognitivos. 

Em 2017, Daher e Giugliani viajaram ao Japão para conversar com os diretores da empresa, com intuito de convencê-los a trazer a pesquisa ao Brasil. A história de Daher e o cenário brasileiro para os pacientes com MPS II interessou os executivos, que decidiram redirecionar o estudo para o país – a princípio, o estudo seria realizado nos Estados Unidos.

“Com a visita ao Japão do Antoine Daher e do Dr. Giugliani, que viram na pesquisa clínica a oportunidade de antecipar o acesso à inovação aos pacientes acometidos pela doença que não podem esperar o desenvolvimento clínico completo da tecnologia (mais de 10 anos) devido à rápida degeneração neurológica, onde cada dia conta, a JCR entendeu que poderia contribuir com a realização da pesquisa clínica no país, trazendo uma solução para uma necessidade médica não atendida”, diz Vanessa Tubel, CEO da empresa no Brasil. Presente no território brasileiro há quase três anos, a JCR é focada no desenvolvimento de tratamento para doenças raras e ultrarraras, como a síndrome de Hunter e outras mucopolissacaridoses, além de doenças órfãs, como fucosidosis, gangliosidoses, e a doença de Tay-Sachs. 

Fases da pesquisa clínica no Brasil

Disponível para a população japonesa há dois anos, o medicamento está na fase III da pesquisa clínica global, também sendo realizada no Brasil. Conduzido por Giugliani no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, o estudo também é feito em colaboração com o Instituto de Genética e Erros Inatos do Metabolismo (IGEIM), sob a coordenação da médica Ana Maria Martins, geneticista e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

De acordo com Giugliani, os resultados apresentam benefícios neurocognitivos para pacientes com MPS II severa e a estabilização, com melhora na atenção e capacidade de raciocínio, para pacientes que têm a forma atenuada da doença. Cuidadores referem melhora de até 55% em interação social, 33% na qualidade de sono e 78% em atividades como caminhadas. 

Segundo Daher, seu filho também apresentou melhora nesses e em outros aspectos: “A parte da concentração e da compreensão também teve grande mudança. Ele se transformou em outra criança”. Por meio da Casa Hunter, o empresário mantém contato com familiares e cuidadores de outras crianças que estão no estudo, com resultados positivos relatados para todos os participantes da pesquisa realizada no Brasil.

Embora haja até o momento um retorno otimista por parte dos pesquisadores e das famílias dos pacientes, existem desafios para a pesquisa clínica com doenças raras no Brasil. São entraves: a demora do diagnóstico, encontrar pacientes elegíveis de acordo com os critérios do estudo e obter no curto prazo todas as evidências solicitadas pela Anvisa.

“Fizemos um estudo e vimos que o atraso no diagnóstico de uma doença rara é de cinco anos. Se é uma doença tratável, cinco anos é muito tempo”, afirma Giugliani. No caso da MPS tipo II, o tratamento convencional, o único disponível hoje no Brasil, melhora os sintomas, mas não tem impacto na questão da neurodegeneração, que está interligada ao prognóstico da doença.

O impasse da regulamentação pela Anvisa

Atualmente, a pesquisa está na fase III, em que são feitos estudos randomizados entre um grupo controle, que utiliza o tratamento padrão, e o grupo experimental, submetido ao tratamento em teste. Essa etapa tem previsão de término em 2026. 

Os medicamentos destinados para doenças raras e ultrarraras, conforme a regulamentação da Anvisa (Resolução 205/2017), podem ser registrados com estudo fase II e com o fase III em andamento. Nestes casos, o registro é possível inclusive com a assinatura de um Termo de Compromisso de entrega de dados ao longo do desenvolvimento do estudo fase III. Pacientes portadores de doenças neurodegenerativas como a MPS II, não podem esperar.  “O efeito colateral da doença é muito além de qualquer efeito colateral da medicação. Por trás desses dados existem pacientes implorando pela possibilidade de viver. Se atrasar um ano, por exemplo, aquele paciente que estava falando pode deixar de falar. O paciente não tem tempo de esperar”, pontua Daher. 

Esta resolução 205 da Anvisa, publicada em 2017, estabelece procedimentos especiais para ensaios clínicos e registro de novos medicamentos para tratamento de doenças raras. A proposta tanto dos familiares quanto dos pesquisadores envolvidos com o estudo é que a pabinafuspe alfa seja aprovada para o tratamento da MPS II. Dessa forma, a medicação poderia ser disponibilizada aos demais pacientes portadores da síndrome de Hunter, não apenas aos que estão participando do estudo desde 2018. 

Para Daher, seria importante que a agência reguladora também abrisse um canal de comunicação com cuidadores e familiares de pacientes com doenças raras. “O FDA, a agência sanitária dos Estados Unidos, já conta com a colaboração da associação de pais de pacientes para esses registros. Os documentos e papéis trazem a parte técnica, mas muitos não conhecem de fato a jornada do paciente e os benefícios que o medicamento traz. A Anvisa tem que conversar mais com os familiares e valorizar a melhora clínica dos pacientes”, argumenta o presidente da Casa Hunter.

“É fundamental que exista sensibilidade para não privar esses pacientes de um tratamento que possa ser transformador na vida dessas pessoas”, finaliza Giugliani.

Fonte: JOTA Info
https://www.jota.info/coberturas-especiais/pacientes-com-sindrome-rara-aguardam-regulamentacao-de-novo-medicamento-pela-anvisa-22062023

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